“No regimento do amor rasgado”
A sina dessa avareense começa na sua união com o carreiro Chicuta, tipo temperamental, ciumento e machista. Ambos conviveram durante cinco anos em terras hoje pertencentes à Fazenda Jacutinga, em Avaré. Saturada com os maus tratos do marido ela foge a cavalo para Botucatu ajudada por um velho escravo da família. Lá foi ter com uma tia que costurava para um cabaré, onde também morava. O seu plano era passar uns dias no local até poder partir para o Sul e jamais voltar.
“Ana Rosa era uma cabocla bonita. Moça faceira. Seu marido tinha um sítio em Avaré. Um dia, ela pirou. Veio para Botucatu. E assentou praça no regimento do amor rasgado. Era a mulher-dama mais falada e cotada no mulherio da fuzarca”.
Assim foi a moça descrita por Sebastião de Almeida Pinto em seu livro “No Velho Botucatu”, de 1956. O escritor, ao comentar que Ana Rosa pediu e recebeu abrigo na casa de Fortunata Jesuína de Melo, dona do cabaré, anotou com humor que ela “batia longe suas colegas com nomes engraçados: Nhana Cabeça, Nica Paranista, Nhana Santantônio, Antoninha Veada, Carolina Perna Grossa, Sinhana Papo Roxo, Nhâ Tucá Guaiaca, Marrequinha, Maria Taquara, Dita Caçafoice e outras que tais”.
De volta do serviço Chicuta não viu a mulher e, ensandecido, matou o escravo e saiu à caça dela. Quando a encontrou, nada de convencê-la a reatar. Indignado, decretou-lhe a morte e para isso contratou José Antonio da Silva Costa, o “Costinha”, e Hermenegildo Vieira do Prado, o “Minigirdo”. O plano vingou porque Costinha se fez passar por bom homem e ofereceu cobertura para Ana Rosa deixar o marido. Mal sabia ela que caminhava para uma cilada mortal.
Quando a cabocla atravessou o Ribeirão Lavapés, na estrada para Pardinho, avistou Chicuta e se deu conta da emboscada. Apelou por misericórdia, mas os assassinos a esquartejaram sem piedade. Morreu aos 20 anos, em 21 de junho de 1885. Conta-se que na hora em que os pedaços do corpo da morena eram carregados por um carroceiro junto de policiais pelas ruas da cidade, o cheiro de flores perfumava o ambiente.
Capturados, presos e condenados, os três assassinos tiveram também fins trágicos: após cumprir a pena, Costinha pereceu esmagado por uma árvore na hora que a cortava. Minigirdo contraiu varíola e morreu na cadeia. Por sua vez, Chicuta irritou-se quando viu seu carro de boi travar no pasto e, ao se deitar no chão para verificar as rodas, os animais avançaram e ele teve a cabeça separada do corpo.
Capela evoca feminicídio e aguarda restauro
No lugar em que Ana Rosa teve seu corpo mutilado um cruzeiro logo depois foi erguido pela piedade popular. Um italiano, em 1920, abriu uma venda perto e passou a organizar festas de Santa Cruz e assim construiu uma capela para atrair devotos. Ele então enriqueceu-se com o negócio ao espalhar que a mulher era milagreira.
Informado dos fatos, dom Lúcio Antunes de Souza, o primeiro bispo diocesano, proibiu as festas e o culto à mulher foi julgado indevido pela Igreja. Por seguidas décadas a chamada capela da Santa Cruz de Ana Rosa ficou à parte. Hoje, como o templo está sob a guarda da Secretaria de Turismo de Botucatu, recebe turistas e está tombado pelo patrimônio cultural botucatuense.
Nos últimos anos o trágico episódio foi revisado tanto pela Igreja como pela sociedade a ponto de os estudantes de arquitetura Lucas Oliveira Moura e Vanessa Marino elaborarem um projeto de restauro da capela para internamente modernizá-la. Por sua vez, o padre José Francisco Antunes, pároco do bairro onde fica o histórico templo, passou a celebrar missa lá mensalmente e a organizar eventos comunitários para denunciar e combater a crescente violência doméstica.
Portanto, ainda que jamais seja canonizada, Ana Rosa é um ícone que pode motivar a proteção de suas semelhantes, já que após 135 anos de seu cruel desaparecimento o feminicídio é uma das causas que mais mata no Brasil.
_______________________________________
* Publicado no jornal ‘A Comarca’, edição 1345, de 26 de setembro de 2020