Popularmente venerada como santa em Botucatu, onde teve fim trágico, Ana Rosa Pereira, criada numa fazenda em Avaré, protagoniza uma trama com tons lendários. O caso veio à tona no inverno de 1885, quando um cavaleiro achou o corpo de uma mulher mutilada perto do Ribeirão Lavapés. O episódio converteu-se no famigerado crime passional que a tantos ainda choca na região.
 
    O primeiro relato, escrito em 1922, no livro “Anna Rosa e Chicuta”, de João Correia das Neves, conta que uma escrava, às escondidas, testemunhou o crime, tendo cooperado depois no reconhecimento dos agressores da bela moça de 20 anos assassinada a mando do próprio marido, o carreiro Francisco Carvalho Bastos, vulgo “Chicuta”, de pouco mais de 40 anos.
 
    O que poucos sabem: a protagonista desse feminicídio teria nascido no arraial do Rio Novo em 1865, conforme consta da inscrição na placa afixada no interior da capela erguida em sua memória, há quase cem anos, no exato lugar em que se deu esse delito hediondo. Porém, na certidão matrimonial ela é identificada como “Ana Roza Pereira, filha de José Pereira da Silva e de Joaquina de tal”, nascida e batizada em São José dos Campos.
    Tema de melodramas de circos populares e de teatros estudantis, a tragédia de Ana Rosa suscita versões e variações que inspiraram artistas e compositores, caso de Carreirinho, autor da melodia “Ana Rosa”, gravada em 1957 pela dupla Tião Carreiro e Pardinho. Aliás, a audição dessa moda de viola me marcou desde menino.
    Em 2018, o botucatuense Davi Franque produziu o curta-metragem “Ana Rosa” para historiar o célebre homicídio no cinema, já que o enredo junta realidade e lenda, amor e violência, ceticismo e religiosidade.
    Hoje, o simples jazigo de Ana Rosa no Cemitério Portal das Cruzes, em Botucatu, é o mais visitado no feriado de Finados, quando fica coberto de flores depositadas pelos admiradores da injustiçada mulher.

    “No regimento do amor rasgado”

 
    A sina dessa avareense começa na sua união com o carreiro Chicuta, tipo temperamental, ciumento e machista. Ambos conviveram durante cinco anos em terras hoje pertencentes à Fazenda Jacutinga, em Avaré. Saturada com os maus tratos do marido ela foge a cavalo para Botucatu ajudada por um velho escravo da família. Lá foi ter com uma tia que costurava para um cabaré, onde também morava. O seu plano era passar uns dias no local até poder partir para o Sul e jamais voltar.
 
    “Ana Rosa era uma cabocla bonita. Moça faceira. Seu marido tinha um sítio em Avaré. Um dia, ela pirou. Veio para Botucatu. E assentou praça no regimento do amor rasgado. Era a mulher-dama mais falada e cotada no mulherio da fuzarca”.
    Assim foi a moça descrita por Sebastião de Almeida Pinto em seu livro “No Velho Botucatu”, de 1956. O escritor, ao comentar que Ana Rosa pediu e recebeu abrigo na casa de Fortunata Jesuína de Melo, dona do cabaré, anotou com humor que ela “batia longe suas colegas com nomes engraçados: Nhana Cabeça, Nica Paranista, Nhana Santantônio, Antoninha Veada, Carolina Perna Grossa, Sinhana Papo Roxo, Nhâ Tucá Guaiaca, Marrequinha, Maria Taquara, Dita Caçafoice e outras que tais”.
    De volta do serviço Chicuta não viu a mulher e, ensandecido, matou o escravo e saiu à caça dela. Quando a encontrou, nada de convencê-la a reatar. Indignado, decretou-lhe a morte e para isso contratou José Antonio da Silva Costa, o “Costinha”, e Hermenegildo Vieira do Prado, o “Minigirdo”. O plano vingou porque Costinha se fez passar por bom homem e ofereceu cobertura para Ana Rosa deixar o marido. Mal sabia ela que caminhava para uma cilada mortal.
    Quando a cabocla atravessou o Ribeirão Lavapés, na estrada para Pardinho, avistou Chicuta e se deu conta da emboscada. Apelou por misericórdia, mas os assassinos a esquartejaram sem piedade. Morreu aos 20 anos, em 21 de junho de 1885. Conta-se que na hora em que os pedaços do corpo da morena eram carregados por um carroceiro junto de policiais pelas ruas da cidade, o cheiro de flores perfumava o ambiente.
 
    Capturados, presos e condenados, os três assassinos tiveram também fins trágicos: após cumprir a pena, Costinha pereceu esmagado por uma árvore na hora que a cortava. Minigirdo contraiu varíola e morreu na cadeia. Por sua vez, Chicuta irritou-se quando viu seu carro de boi travar no pasto e, ao se deitar no chão para verificar as rodas, os animais avançaram e ele teve a cabeça separada do corpo. 
 

    Capela evoca feminicídio e aguarda restauro

No lugar em que Ana Rosa teve seu corpo mutilado um cruzeiro logo depois foi erguido pela piedade popular. Um italiano, em 1920, abriu uma venda perto e passou a organizar festas de Santa Cruz e assim construiu uma capela para atrair devotos. Ele então enriqueceu-se com o negócio ao espalhar que a mulher era milagreira.
    Informado dos fatos, dom Lúcio Antunes de Souza, o primeiro bispo diocesano, proibiu as festas e o culto à mulher foi julgado indevido pela Igreja. Por seguidas décadas a chamada capela da Santa Cruz de Ana Rosa ficou à parte. Hoje, como o templo está sob a guarda da Secretaria de Turismo de Botucatu, recebe turistas e está tombado pelo patrimônio cultural botucatuense.
    Nos últimos anos o trágico episódio foi revisado tanto pela Igreja como pela sociedade a ponto de os estudantes de arquitetura Lucas Oliveira Moura e Vanessa Marino elaborarem um projeto de restauro da capela para internamente modernizá-la. Por sua vez, o padre José Francisco Antunes, pároco do bairro onde fica o histórico templo, passou a celebrar missa lá mensalmente e a organizar eventos comunitários para denunciar e combater a crescente violência doméstica.
     Portanto, ainda que jamais seja canonizada, Ana Rosa é um ícone que pode motivar a proteção de suas semelhantes, já que após 135 anos de seu cruel desaparecimento o feminicídio é uma das causas que mais mata no Brasil.
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* Publicado no jornal ‘A Comarca’, edição 1345, de 26 de setembro de 2020