Pesquisa desenvolvida na Unesp mostra avanço de peixes peçonhentos rumo a uma das regiões mais populosas do país.
O Rio Tietê cruza uma das regiões mais desenvolvidas e densamente povoadas do país, que inclui mais de sessenta municípios do Estado de São Paulo, entre eles a capital. É considerado o principal corpo d’água existente integralmente dentro das fronteiras paulistas.
Sua importância social e econômica é imensa, pois proporciona abastecimento de água para diversos municípios, abriga barragens e usinas para aproveitamento do potencial hidrelétrico e, por meio da hidrovia Tietê-Paraná, funciona como um canal para o transporte da produção agrícola e industrial pela região, a um custo significativamente menor do que o do transporte rodoviário.
Além disso, em dezenas de comunidades ou municípios ao longo dos seus 1. 136 km de curso, o Tietê recebe praticantes de pesca artesanal, profissional e de subsistência. Diversos trechos do rio também apresentam potencial turístico explorado pelos municípios às suas margens, com atrativos como passeios de barco e praias fluviais estruturadas para receber banhistas. Para várias cidades situadas às margens do Tietê, a pesca e o turismo são setores importantes para auxiliar a alavancar a economia local.
No entanto, a crescente presença no Tietê das arraias de água doce, peixes peçonhentos da família Potamotrygonidae, com potencial de causar graves acidentes a pescadores e banhistas, pode, em médio prazo, trazer repercussões capazes de alterar a relação do rio com as atividades econômicas dos municípios, especialmente no que diz
respeito ao turismo:
A tese de doutorado da enfermeira Isleide Saraiva Rocha Moreira, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Animais Selvagens da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Unesp, câmpus de Botucatu, intitulada “Mapeamento de arraias fluviais do gênero Potamotrygon no Rio Tietê, Estado de São Paulo”, mostra que esses
peixes, vindos pelo Rio Paraná, entraram pela foz do Tietê, no município de Itapura e já colonizaram até 140km do rio à montante, ou seja, rio acima, no sentido da nascente. “Estamos tendo, provavelmente, a maior invasão de um animal peçonhento no Estado de
São Paulo desde a chegada dos escorpiões-amarelos, que tantos problemas nos causam”, alerta o professor Vidal Haddad Júnior, orientador da tese.
Acidentes
Embora não sejam agressivas, o potencial de causar acidentes das arraias fluviais é alto. Elas costumam ficar em águas rasas, muitas vezes enterradas nos fundos arenosos dos rios. Se forem pisadas, elas executam um movimento de defesa “chicoteando” a cauda e podem atingir o pé ou a perna da vítima. Cada animal tem em sua cauda de um a quatro
ferrões recobertos por um epitélio produtor de peçonha, que podem causar importantes envenenamentos. A dor é intensa e normalmente surgem feridas nos locais de inoculação do veneno.
Em seu livro “Animais aquáticos potencialmente perigosos do Brasil – Guia médico e biológico”, o professor Haddad informa que a dor da ferroada diminui após um período de cerca de 24 horas. Mas, frequentemente, o tecido atingido sofre necrose, com formação de
úlceras de cicatrização demorada e o risco de infecções secundárias.
Os acidentes também podem ocorrer ao tentar segurar ou manipular o animal. Até o momento, a casuística das ocorrências é relativamente baixa e elas têm acontecido principalmente com pescadores, durante a manipulação do animal. “Como muitos pescam com rede, a arraia acaba vindo na malha e o manejo para retirar os peixes pode ocasionar
acidentes”, conta Isleide. Mesmo animais pequenos podem causar acidentes dolorosos e incapacitação temporária para o trabalho, o que pode se constituir num problema especialmente sério para quem tem na pesca sua principal ou única fonte de renda.
Além dos cuidados na pesca, a única maneira de prevenir os acidentes com arraias é caminhar pelos rios arrastando os pés, sem levantá-los do chão. Dessa forma os animais tendem a fugir. Elas só ferroam se forem pisadas. No caso de ferroadas, é preciso mergulhar o local atingido em água quente (não fervendo) por um período de 30 a 90
minutos. A dor melhora com a imersão do ferimento, mas é sempre necessário procurar atendimento médico, pois pode haver infecções, ou até necessidade de intervenções cirúrgicas em casos de quebra ou transfixação do ferrão no corpo do paciente.
A preocupação com a invasão das arraias ao longo do Tietê cresce em razão de sua chegada a regiões mais populosas do Estado, nas quais, além da atividade pesqueira, a população utiliza os rios para fins de lazer, frequentando ranchos, balneários e praias fluviais. Um exemplo é a “Prainha” de Araçatuba, localizada próximo ao ponto de embarque
dos pescadores. Bastante frequentada por banhistas, é um dos fatores com os quais o poder público local conta para a obtenção da classificação de Estância Turística para o município, o que garantiria repasses significativos de recursos do Governo Estadual para
investimento em turismo.
Esse panorama, somado ao desconhecimento sobre a presença das arraias fluviais e os métodos adequados de prevenção e socorro a acidentes envolvendo esses animais, pode contribuir para o crescimento no número de ocorrências, com impactos potencialmente relevantes sobre o turismo e sobre a saúde de pescadores. O professor Haddad ressalta a gravidade da situação. “Não temos estatísticas dos danos colaterais às atividades autônomas de pessoas acidentadas, mas, sem dúvida é um problema de saúde pública, com consequências sociais, humanas, econômicas. É uma invasão que vai ter desdobramentos que precisam ser cuidados”.
Caminho aberto
As arraias fluviais só existem na América do Sul. Provavelmente se originaram a partir de espécies de arraias marinhas que, ao longo de milhares de anos, se adaptaram à vida na água doce e se distribuíram amplamente pelas bacias dos rios da Prata e Amazonas. De algum modo, conseguiram descer o Rio Paraguai e chegar ao Rio Paraná. Mas a ação
humana foi decisiva para a expansão desses peixes.
O Salto de Sete Quedas, em Guaíra (PR), representava uma barreira geográfica natural
para a progressão das arraias. Com a submersão das Sete Quedas para a criação do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1982, elas tiveram a possibilidade de prosseguir na colonização do Rio Paraná. É consenso entre os pesquisadores que as arraias fluviais se aproveitam dos canais artificiais e das eclusas instaladas nas barragens dos rios
para ampliar sua área de distribuição.
Em 1999 a equipe do professor Haddad registrou a presença de arraias fluviais no rio Paraná, oriundas de trechos anteriores à Sete Quedas. Cerca de dez anos depois, toda a região do Pontal do Paranapanema estava invadida por estes peixes. Eles continuaram avançando e colonizando o Rio Paraná, alcançando a região de Três Lagoas (MS) e
Castilho (SP). Em 2005, o professor relatou a captura da primeira arraia no Rio Tietê, em sua foz. Desde então, o avanço desses animais pelo Tietê era uma incógnita.
A pesquisa de Isleide, feita nos municípios de Pereira Barreto, Araçatuba, Santo Antônio do Aracanguá e Buritama, mostra que as arraias já colonizaram totalmente a região do Baixo Tietê, ou seja, o trecho do rio localizado no noroeste do Estado.
Para obter as informações sobre a ocorrência de arraias, Isleide criou uma eficiente rede de contatos com os pescadores da região, realizando visitas, entrevistas e aplicando questionários. Segundo ela, esses trabalhadores ainda estão aprendendo a lidar com a presença das arraias. “Eles estão se acostumando, mas ainda têm medo”. Embora a
carne das arraias fluviais seja consumida e apreciada na Região Norte do Brasil, ela não costuma ser aproveitada pelos pescadores paulistas, que não consideram o animal como um peixe e sim como uma praga venenosa que causa ferimentos graves. Ao pescar uma arraia, eles costumam cortar a cauda onde fica o ferrão e devolver o peixe ao rio.
A captura dos animais para o trabalho de registro das espécies e mapeamento do local de ocorrência foi realizado partir do produto final da pesca. “Com as dificuldades impostas pela pandemia, nós nos reinventamos. Os contatos com os pescadores passaram a acontecer por trocas de telefonemas, mensagens por aplicativo e vídeos. Sempre que capturavam uma arraia eles me enviavam as informações”. Com auxílio dos pescadores, a pesquisadora mapeou 40 pontos no Rio Tietê em que as arraias fluviais foram observadas ou capturadas, mas ela estima que esse número seja muito maior.
A tese aponta a provável expansão das populações de arraias rio acima, com possibilidade de atingir as sub-bacias Tietê-Batalha, Tietê-Jararé e Médio Tietê. E não há o que fazer para controlar o animal, segundo o professor Haddad. “Ele é vivíparo, não agressivo, se alimenta de insetos ou peixes pequenos, por ser uma espécie invasora não tem predadores e se adaptou plenamente ao Rio Tietê”.
Informação é prevenção
O único caminho para prevenir os acidentes e também para evitar o extermínio sem razão dos animais é a ampla adoção de programas de esclarecimento junto às comunidades ribeirinhas e à população em geral. “São peixes peçonhentos que avançam em áreas onde eles anteriormente não existiam”, comenta Isleide. “É necessário continuar os estudos e fortalecer as orientações para pescadores e público em geral”. As medidas de conscientização recomendadas por Isleide abrangem a comunicação visual, com placas de alertas e orientativas; palestras direcionadas aos pescadores quanto ao cuidado no manejo e primeiros cuidados em caso de acidente; orientação aos profissionais de saúde para os cuidados no atendimento às vítimas e notificação de acidente com animais peçonhentos e ações educativas junto a entidades como escolas e Polícia Ambiental para que o turismo local possa continuar, com a devida segurança.
O professor Vidal Haddad Junior tem um longo histórico de atuação em atividades extensionistas de orientação educacional junto a comunidades sobre acidentes com animais aquáticos e os respectivos cuidados imediatos a serem tomados. Com o auxílio de seus orientados, já ministrou palestras e elaborou folhetos informativos e cartilhas para conscientizar comunidades em várias regiões do Brasil. Isleide e o professor Haddad já foram convidados a falar sobre as arraias fluviais no município de Pereira Barreto. Nesse sentido, a tese de Isleide já traz, como anexo, um folheto informativo sobre a presença
das arraias no Baixo Tietê com esclarecimentos gerais sobre o animal, medidas para a prevenção de acidentes e orientações sobre o tratamento de feridos e sobre a notificação de eventuais ocorrências aos serviços de Saúde.
Os acidentes com arraias integram a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de Saúde Pública.
Segundo o professor Haddad, minimizar o efeito da invasão das arraias fluviais é o que pode e deve ser feito nesse momento. “A presença desse animal no Tietê é resultado de atitudes humanas que não estudaram ou não levaram em conta as consequências biológicas. Essa progressão pelo Tietê deve continuar, pois não há nada que indique que
vai parar. As áreas mais populosas no Médio Tietê devem ter arraias fluviais em breve. As campanhas devem ser iniciadas para aumentar o conhecimento que a população tem sobre esses animais. É a única maneira de diminuir o impacto e preparar as áreas invadidas para
lidarem melhor com o problema”.
Assessoria