Na última segunda-feira (29) completaram-se dez anos da aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei nº 12.711, conhecida popularmente como “Lei de Cotas”. Essa norma, valida para todo o território nacional, determina que no mínimo 50% das vagas ofertadas nos cursos de graduação por instituições públicas, federais e de ensino superior sejam destinadas exclusivamente a pessoas que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Neste percentual, metade das vagas deve ser reservada a pessoas com renda familiar per capita igual ou inferior a um salário-mínimo e meio. A Outra metade será reservada a pessoas com renda familiar per capita superior a um salário mínimo e meio. Nestas duas categorias serão reservadas vagas a pessoas negras (pretas e pardas) ou indígenas na proporção dessas populações no Estado da instituição de ensino com base no último censo realizado pelo IBGE.

Como forma de ajudar a compreender a dimensão do impacto e a transformação que a Lei de Cotas provocou junto as universidades brasileiras, a Assessoria de Comunicação e Imprensa (ACI) da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/UNESP) preparou uma série de materiais que serão publicados ao longo desta semana.

Hoje convidamos você a conhecer a história de Laís Gonçalves Moreira, aluna do 6º ano do curso de Medicina. A jovem preta, de Caratinga (MG), que através de muito esforço e determinação, está perto de realizar o sonho de tornar-se a primeira médica de sua família.

 

 

 

Minha história 

“A minha história se passa em uma cidade do interior de Minas Gerais, Caratinga. Estudei grande parte da vida em escolas públicas, salas lotadas de alunos, a maioria com dificuldades sociais e financeiras. A ausência de professores era compensada pelo apoio dos meus pais, que sempre priorizaram meus estudos. Ganhei um ano de bolsa em um colégio particular durante o Ensino Fundamental e nesse ambiente com alunos que tinham uma realidade diferente da minha, certamente me estimulou a ser uma das mais empenhadas da classe. No Ensino Médio, decidi que queria fazer Medicina. Mas isso só seria possível em uma Universidade Pública. Logo, esse se tornou meu foco maior. Estudava de domingo a domingo, fazendo provas antigas e usando apostilas gratuitas da internet. Porém, meus exemplos familiares de parentes em universidades são escassos. Eu sonhava em ser a primeira médica da família. Eu não tinha ideia de quantas abdicações essa escolha me custaria. Minha adolescência foi com poucos amigos, a maior parte do tempo sozinha no meu quarto, estudando por um objetivo grandioso. À noite, concluía o Ensino Médio em uma escola pública e durante o todo dia ficava no cursinho. Esses anos de desafios me renderam a surpresa de ser aprovada em três universidades públicas do Brasil para o curso de Medicina, aos 18 anos de idade. Assim, criei meu canal do YouTube, hoje com mais de 10 mil inscritos, narrando minha jornada e esmiuçando o caminho que tracei, para que mais jovens como eu pudessem chegar até aqui. Hoje em dia, dedico meu Instagram pessoal para mostrar a rotina na Faculdade de Medicina”. 

 

A importância das cotas 

“Já é sabido que o acesso a universidades públicas é permeado por privilégios de ordem financeira, social e de informação. Pessoas pretas e pardas, indígenas e pobres são a minoria nesse cenário. O sistema de cotas é uma medida temporária e muito eficiente. Tal medida legislativa, sem dúvidas, cabe atualmente muito bem ao contexto brasileiro; um país que por mais de quatro séculos presenciou a escravidão e marginalização de grande parte de sua população. E nos dias de hoje, essa estrutura ainda é complexa, com muitos jovens de periferia abandonando os estudos cedo para trabalhar, cuidar da família e sobreviver. Entendo que pequenos avanços já podem ser vistos: mais jovens marginalizados com acesso ao ensino superior de qualidade, promovem informação, mudança de contextos sociais e propiciam a ascensão desses ao mercado de trabalho qualificado. Desta maneira, outros tantos jovens agora podem sonhar para estar neste ambiente que estou hoje, em uma das melhores faculdades de Medicina do Brasil, UNESP Botucatu”.

 

O desafio da permanência estudantil

“A permanência em uma nova cidade, no meu caso há mil quilômetros de distância de onde nasci, exige muitos custos. Sem dúvidas, o apoio financeiro da universidade foi peça chave para a moradia, alimentação e transporte em Botucatu. Com a inflação que vivenciamos aumentada após a pandemia, diversos colegas precisaram cada vez mais de ajuda da família, que muitas vezes está em outro estado e se desdobrando para trabalhar mais e mais para dar suporte aos seus. Assim, mensalmente, a faculdade fornece apoio por meio do programa de Permanência Estudantil. Esse programa de seleção exige algumas fases: inscrição, envio de documentações comprobatórias e termina com uma entrevista. Senti-me acolhida e acredito que deva ser expandido para que mais alunos em condições difíceis possam concluir o sonho de se formar” 

 

A busca pela representatividade

“Acredito que muito do preconceito sobre a política de cotas vem de indivíduos que se posicionam contrários a ela porque vivenciam situações de privilégio. Daí o desconhecimento do salto que esse sistema propiciou. Na minha rotina, uma mulher negra e de família pobre, dentro de um ambiente acadêmico majoritariamente elitizado, transpassa a vários olhares. Estar em ambientes repletos de pessoas mais privilegiadas que eu, muitas vezes, fez com que não me sentisse representada. Perguntei a mim onde estariam as jovens que cresceram na periferia onde eu cresci? Logo, a representatividade baixa e ausência de peles pretas em cargos de prestígio é uma das faces dolorosas da discriminação no Brasil. Muitas vezes, olhei para os corredores do hospital, e os funcionários da limpeza e de atendimento ao público eram os que mais se pareciam comigo. Sentia uma distância enorme ao ver que os chefes e docentes tinham uma realidade bem diferente da minha. É necessário normalizar que indivíduos marginalizados possam ocupar lugares de poder, tenham acesso assim como eu à iniciação científica com bolsa, a congressos, à Diretoria de Ligas e da Atlética. Só através desses conhecimentos o abismo social e o racismo gradualmente irão se dissolvendo”.

 

Em busca de igualdade

“O sistema de cotas atual é uma medida inicial prática e efetiva para propiciar a possibilidade de jovens carentes acessarem a Universidade Pública, tendo em vista a disparidade de ensino entre escolas particulares e públicas. Em um contexto de indivíduos que foram privados de acesso a professores e a conhecimentos, em contrapartida ao que foi ofertado desde a infância a outros, fica clara a importância do sistema de cotas. Logo é essencial a sua manutenção a fim de minimizar esse contexto complexo de privações. Em seguida, é imprescindível fornecer educação básica nos primeiros anos escolares e popularização do acesso aos concursos de Vestibular, o qual eu fui saber como funcionava apenas três anos antes do ingresso na Faculdade de Medicina”.

 

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