Tradicional é uma palavra que não está no vocabulário dos professores Marisia Poli, de 46 anos, e Fábio Machado, de 43. O casamento dos dois é a prova disso. Em uma cerimônia no último dia 4 em Botucatu, eles surpreenderam convidados com escolhas nada convencionais. Um vestido de noiva preto, pub no lugar da igreja e um padre excomungado como celebrante.

Marisia e Fabio, que estão juntos desde 2011, escolheram se casar em fevereiro por admiração a Iemanjá — orixá de religiões afro-brasileiras. A

Ela contou detalhes da cerimônia e explicou as escolhas do casal:

‘Ele ficou horrorizado’

“Eu e o Fábio tivemos criações muito diferentes. Ele veio de uma família tradicional, pai e mãe são católicos e estão juntos até hoje. Eu não. Vim de uma família de pais separados, comecei a trabalhar cedo e somos mais espiritualistas.

O casamento dos meus pais não deu certo e eu não tinha o ideal de casar ou morar junto com alguém. Na minha concepção, isso era algo muito distante. O Fábio sempre falou que a gente ia se casar. Eu ficava brava, falava que não. Um dia, de saco cheio, falei que só aceitaria com uma condição: de vestido preto e ao som de Highway to Hell, do AC/DC [banda australiana de rock]. Ele ficou horrorizado.

Falei isso de deboche, porque sabia que ninguém toparia a ideia e nenhum padre aceitaria fazer uma celebração dessa. No decorrer dos anos, fui mudando e ele domou meu espírito mais rebelde. Pouco mais de um ano depois que nos conhecemos, falei que queria engravidar. Isso o pegou de surpresa porque contrariava o que eu sempre defendi. A Aurora nasceu em maio de 2013.

Mesmo com o nascimento dela, ainda não morávamos juntos. Sempre tivemos uma vida de casados, mas cada um morando em sua casa. Em 2019, decidimos morar juntos. Assinamos o contrato em janeiro de 2020. Voltamos a falar sobre casamento, de fazer uma celebração diferente, e o Fábio concordou. Em seguida veio a pandemia. Foram 10 anos para convencê-lo e, quando ele cedeu, entrou a pandemia e tivemos de adiar os planos. Em setembro de 2022, retomamos o assunto.

‘Achavam que não teria coragem’

Fiz questão de que nem o convite fosse tradicional. Não fizemos nada impresso, optamos por mandar um vídeo mais personalizado e descontraído por WhatsApp.

As pessoas mais próximas sempre me ouviram comentar que só me casaria se fosse de preto, mas não sabiam que isso realmente aconteceria. Achavam que era só uma maneira de falar e que eu não teria coragem de romper uma tradição. Conseguir um vestido preto foi um desafio. Comecei a procurar ateliês na internet, mas não faziam os modelos em preto. Acabei encontrando um em Minas Gerais e fechei com eles, mesmo achando arriscado. Paguei, mandei as medidas e ficava perturbando pedindo fotos.

Achava que eles me enganariam e mandariam um vestido branco. Só me acalmei quando abri a caixa e vi o vestido exatamente como eu escolhi e preto Já a cesta da daminha, que foi minha filha, e o porta-alianças eu não achei em preto. Não consegui ninguém que fizesse nem nesses ateliês nem aqui na cidade [Botucatu]. Então fui eu mesma que fiz.

‘Igreja de forma alguma’

Não encontrávamos um lugar que correspondesse ao que eu queria. Igreja não, de forma alguma. Sugeriram uma chácara, mas era muito comum. Tinha um lugar aqui em Botucatu com dois ambientes, uma boatezinha — mas ainda não era isso. Inaugurou um pub na cidade e fomos lá curtir um som. Quando entrei, falei: que lugar lindo, quero me casar aqui. O lugar é igual a um bar da série Lúcifer [de mistério], da Netflix. Tem a parede com bebidas, espelhos, contorno do balcão em vermelho, lustres maravilhosos.

Fotos: Juliana Lautenschagler

Uma semana depois, mandei mensagem para a dona e perguntei se ela alugava o espaço para eventos particulares. Ela disse que não. Quando falei que era um casamento, ela pirou e abraçou a ideia comigo. Ela foi a nossa fada madrinha. Correu atrás de tudo de decoração e até queria que eu entrasse de moto, mas fiquei com medo. Era um trajeto curto, o vestido tinha cauda e tinha muita criança no lugar. Decidimos também não contratar serviço de buffet, então os convidados foram servidos com os pratos da casa. Eles chegavam, recebiam a comanda com um voucher e ficavam lá. Às 20 horas, o bar abriu para todo mundo normalmente.

‘Entrei ao som de Iron Maiden’

Outra curiosidade é que, no dia em que a gente se conheceu pessoalmente, em um festival, tocou uma banda chamada Calibra. Sempre íamos aos shows, mas com o tempo ela acabou. Há uns três anos eles voltaram a tocar com outro nome e os chamamos para se apresentarem no casamento. Nós queríamos que o casamento tivesse rock. Não queríamos versões mais leves, só o instrumental. Eles tocaram Foo Fighters, Guns N’ Roses, Janis Joplin. Entrei ao som de Fear of the Dark, do Iron Maiden [banda de heavy metal).

Aceitei não entrar com a música do AC/DC. Afinal, com três anos morando juntos a vida não era um inferno [como a letra de Highway to Hell sugere]. E ele mostrou com toda calma e paciência que casamento não era sinônimo de uma vida machista. Mas saímos ao som dela, até o Fábio fez questão que tocasse.

Padre impôs uma condição

A escolha pelo padre Beto [para a celebração] começou em 2013, antes mesmo de a gente decidir se casar mesmo. Quando eu descobri que estava grávida, começaram as notícias da excomunhão por ele ser uma pessoa mais progressista e menos conservadora. Fiquei encantada. Não sou católica e não tenho afinidade com outras religiões justamente por esse conservadorismo, esse olhar de que tudo é pecado e vai levar para o inferno. Fiquei encantada com essa coragem dele de bater de frente com uma instituição secular. Ele abraçou a causa e foi até as últimas consequências [padre Beto foi excomungado por defender o casamento entre pessoas do mesmo sexo, divórcio e fazer críticas à moral sexual da Igreja Católica]. Ainda em 2013, falei para o Fábio que se um dia a gente se casasse seria com um padre excomungado celebrando. Ele falava que a família não aceitaria porque não teria o valor do sacramento do matrimônio, perante a igreja

Quando decidimos, entrei em contato com ele e já avisei que entraria de preto e seria em um pub. Ele aceitou celebrar e disse que a única condição que ele impunha aos noivos era de que eles se amassem No início da celebração, ele disse que onde duas ou mais pessoas estivessem reunidas em nome de Cristo, Deus estaria presente — mesmo que fosse em um pub — porque não existem limites ou barreiras onde tem amor. E ele fez uma homilia muito bonita, leu um trecho de uma carta de São Paulo. Falou que as mulheres não devem ser submissas, mas parceiras. Que aquilo não era a união de duas metades, porque não éramos incompletos — mas, duas pessoas inteiras que convivem e aprenderam a se amar.

Fotos: Juliana Lautenschagler

Fotos: Juliana Lautenschagler / Fonte Universa