Arte: Correio Braziliense
Gesiel Júnior
Especial para o Botucatu online
O perseguido “arcebispo vermelho” teria sido rival do rejeitado “arcebispo tridentino” de Botucatu?
Ainda que esta pergunta seja improcedente, a resposta pode ser encontrada na coletânea de cartas “Circulares Conciliares” escritas por dom Helder Câmara (1909-1999) e, digamos, que até surpreenda quem supunha que ele nem se relacionasse com dom Vicente Marchetti Zioni (1911-2007). Os dois bispos, respectivamente taxados de progressista e de tradicionalista, se respeitavam mutuamente, ainda que suas visões eclesiais aparentassem divergências.
Em correspondência datada de 15/16 de novembro de 1965, o então arcebispo de Olinda e Recife (PE), redigiu de Roma, no fim do Concílio Vaticano II, suas observações sobre atos importantes do episcopado brasileiro, nas quais menciona o então bispo de Bauru. Aliás, esses apontamentos estão reunidos em 6 livros que retratam o pensamento do pequenino prelado cearense e mostram aos leitores todo o seu ideário e prática de vida.
“Ontem, a Assembleia da CNBB – anotou dom Helder – trouxe boas surpresas. Dom Vicente Zioni, o novo secretário nacional do Ministério Sacerdotal, cuja eleição pareceu vitória do mais puro reacionarismo começou de modo felicíssimo o seu trabalho: articulou-se com o arcebispo de Botucatu e obteve a liberação total do padre Marins (ele deixara o Mundo Melhor, deveria voltar à Diocese. Dom Henrique Trindade o cedeu, sendo o seu gesto aclamado calorosamente pela Assembleia)”.

 

Essa referência de dom Helder é ao padre José Marins, teólogo hoje especializado em Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Ordenado sacerdote em 1956, ele foi liberado para atuar no Movimento por um Mundo Melhor (MMM), criado na Itália pelo jesuíta Renato Lombardi, com o objetivo de promover uma renovação eclesial para unir fé e vida.
“Dom Zioni está dando apoio integral ao padre Marins. E este lhe soprou uma carta a todo o clero do Brasil, pedindo sugestões para a atuação do Secretariado Nacional que pertence a eles… A medida causou, no plenário, a melhor impressão”, anotou dom Helder.
Irmão do escritor e acadêmico Francisco Marins (1922-2016), esse religioso, hoje nonagenário, há mais de 50 anos percorre o mundo para implantar comunidades eclesiais de base (as CEBs).
A propósito, dom Helder incentivou e fortaleceu a formação dessas comunidades e, em 1964, quando se tornou arcebispo de Olinda e Recife passou a ser visto como um contraponto à ditadura militar. Foi então acusado de comunista, chamado de “arcebispo vermelho” e se tornou alvo dos generais a partir do AI-5.

FUTURO SANTO?

Convidados por dom Agnelo Rossi, dom Helder e dom Zioni, quando eram, respectivamente, bispos auxiliares do Rio de Janeiro e de São Paulo, atuaram como consagrantes na ordenação episcopal do futuro cardeal, em 1956. Bem-humorado, aquele que viria a ser arcebispo de Botucatu ria ao relatar brincando que Rossi havia sido “crucificado entre dois ladrões”.
Pois bem, ainda que ambos pensassem a Igreja de maneira distinta, os dois foram figuras proeminentes do catolicismo no Brasil e, cada qual, a seu modo, atuou de maneira benigna sem comprometer a convivência fraterna.
Recentemente, o Vaticano abriu o processo de canonização de dom Helder Câmara, cuja postura, entretanto, é tida como bastante controversa na política, pois ele teve influente papel no enfrentamento ao governo militar que o acusava de demagogo a ponto de proibi-lo de se manifestar publicamente.
“Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo”, costumava afirmar o frágil arcebispo, principal fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
*Cronista e pesquisador, é autor de 38 livros sobre a história da região, incluindo temas ligados à Igreja Católica.