editado originalmente pelo Diário da Serra, em ¾ de março de 2007
À beira do Tietê e em terras desta região, deu-se em 1775, um fenômeno envolvendo diretamente o Santo Brasileiro. Considerado um dos mais legítimos milagres de Frei Galvão, a aparição do Santo setecentista, desafia a contemporaneidade pela quantidade de citações nos mais variados compêndios de história paulista e ressurge, reconsiderado, a cada época, seja pela devoção, seja pela ciência.  
     Contado pelo grande historiador das Bandeiras Afonso Taunay, o fato envolve em mistério a presença de Frei Galvão, nas barrancas do Rio Tietê, no distrito de Potunduva, ainda hoje município de Jaú.
     Potunduva já foi cidade, por pouco tempo, nos idos de 1995, voltando depois à condição de sub-distrito da vizinha Jaú. Distrito ou Cidade, entretanto, Potunduva sempre foi um dos lugares mais antigos da colonização da capitania de São Paulo e, depois, da província. Cenário de Bandeiras, Potunduva foi porto de descanso dos que subiam e desciam o Tietê, local de recrutamento de “proeiros”, remadores e mestres, para os mesmos fins e destino: o Mato Grosso. Conta-nos Taunay que, um dia, Frei Galvão apareceu para confessar um mestre de Bandeira, moribundo ferido de morte, que a ele recorrera em suas últimas preces. O historiador das Bandeiras relata ter colhido esse depoimento de um antigo fazendeiro das imediações e de octogenários de Tietê, Porto Feliz e outras localidades, que por sua vez a teriam ouvido de seus pais e avós.
     Agora reconhecido como Santo, Frei Antonio de Sant’Anna Galvão, viveu no século XVIII (anos 1700) e seu apostolado desenvolveu-se em São Paulo, principalmente, tendo construído e administrado, por anos, o Convento da Luz, estando ali seus restos mortais. Essa comovente história, no momento em que o Brasil espera pela sua santificação, nos remete à rude conquista paulista e à singeleza da ação dos homens devotados aos seus semelhantes. Por fim, é bom registrar que esta história foi contada no livro “Frei Galvão, Bandeirante de Cristo”, edição de 1954, sendo sua autora, apenas assinada por Maristela, Editora Vozes, Petrópolis – Rj. Contudo, o fato já corria há dezenas de anos, quando foi relatado pelo historiador Taunay.  Deu-se assim:

Entrando na história

     “Ao passar, entretanto, estes tempos de cumprir o preceito, nem por isso Frei Galvão interrompia seu ministério sagrado. Havia os moribundos, junto dos quais era sempre chamado, a fim de os preparar para a eternidade.
      Foi, justamente, para tais casos que Deus lhe concedeu o privilégio da bilocação, que, por ter sido freqüente, era conhecido em toda a Capitania. Destes fatos prodigiosos, o mais importante e melhor, historicamente, provado, foi sua bilocação a favor de Manuel Portes, que morreu às margens do Rio Tietê, no bairro de Potunduva, Município de Jaú, pelos fins do século XVIII.
    Com a devida vênia vamos transcrever a narração do sr. dr. Afonso Taunay, que por vez a ouviu do sr. João Evangelista Pompeu de Campos.

Quem viu e quem contou a história

     Era este homem, cavalheiro sincero e verídico – diz Taunay – inteligente e piedoso. Fora uma destas crianças raras que sentem invencível atração por ouvir conversas dos velhos, curiosas e perguntadoras. E, como dispusesse de grande retentiva, muita coisa contava de pitoresco e valioso sobre bandeiras, entradas, monções, tropas, café, além de muitas particularidades de homens e fatos. No tempo de sua atividade de plantador de café nas barrancas do Tietê à orla do sertão, quando o grande cafezal do Oeste fazia recuar a mata virgem, fora muitas vezes a Potunduva, visitar o local onde, no dizer geral da gente do vale, operara-se um dos mais célebres milagres de Frei Galvão: a sua súbita aparição a confessar Manuel Portes, ferido de morte.

A Capelinha marca o lugar

      Isto fizera Pompeu, ainda pelos anos do Império. Mais tarde conseguira, de diversos devotos, recursos para a edificação de singela capelinha, no local dantes assinalado por tosco cruzeiro, ereto onde ocorrera a prodigiosa cena.
      Fora ele quem fizera colocar a singela inscrição a que se refere o Pe. A Ortmann: uma tabuleta com algumas figuras e inscrição em pirogravura, representando a Frei Galvão ouvindo a confissão de um moribundo. A inscrição dizia: “Neste presente lugar, dizem que houve um prodígio de Frei Galvão, vindo de São Paulo, a confessar Manuel Portes que estava á morte”.
    Esta tabuleta desapareceu, não se sabe como e quando. Alguns presumem que se tenha queimado pelo fogo originado de círios que os devotos ali deixavam acesos. Dizem também que os canoeiros do Tietê costumavam levá-la consigo em suas viagens, e quando voltavam tornavam a colocar em seu lugar, e isso para serem protegidos pelo Servo de Deus.

Potunduva e as Monções Bandeiristas

    No bairro de Potunduva, todos os moradores viviam do tráfego das monções. Ali residiam algumas famílias de caboclos cujos homens se empregavam como proeiros, remeiros e varejeiros dos canoões das flotilhas a trafegarem entre Porto Feliz e Cuiabá.
     Entre os mestres das monções, em fins do século XVIII, era especialmente prestigioso Manuel Portes, graças à ordem que sabia manter entre as tripulações, o cuidado, ou antes o rigor com que executava as encomendas e escrupulosa fidelidade da entrega de dinheiros e mercadorias.
     Era um mameluco de prodigiosa energia, hercúleo e violento, sobremodo propenso a deixar-se a arrebatar pela cólera. Seus subordinados o temiam imenso, pois não trepidava em castigá-los do modo mais rude.
     Os negociantes de São Paulo e Mato Grosso nele depositavam grande confiança. E muitos esperavam, ansiosos, a sua presença de capataz de monção reiúna, para lhe entregarem a mercadoria.

A última Monção do Mestre Portes

    Vinha este sertanista conduzindo a monção reiúna que subia o Tietê rumo a Porto Feliz. Tinha queixas da desídia de um de seus homens de cujo nome Pompeu não se lembrava, parecendo-lhe que seria certo Apolinário, caboclo indolente e pouco afeito à disciplina férrea do mestre. Já o repreendera várias vezes e o ameaçara e o homem se humilhara, mas não se emendara. Abicados os canoões à barranca do Tietê e desembarcadas as equipagens, para o jantar, pusera-se Manuel Portes a fazer a costumeira revista e ronda diária. E aí apanhara novamente o caboclo em falta.
     Deixara-se então levar a uma das freqüentes cóleras furibundas. Tomando uma açoiteira, chibateara rijamente o remeiro que, aliás, não se defendera.

Ferido de morte, Portes clama por Frei Galvão

Imagem: Canção Nova/Santuário Pai das Misericórdias
     Pouco depois estava Portes conversando com um de seus homens quando inesperadamente sentiu forte murro às costas. Voltando-se viu Apolinário que fugia a correr, empunhando enorme facão. Terrível fora a punhalada, não tardando que o apunhalado caísse prostrado por enorme hemorragia.
   Pusera-se então no auge do desespero a gritar: “Meu Deus, eu morro sem confissão! Virgem Mãe de Deus, perdão! Perdão! Senhor Santo Antonio, pedi por mim! Dai-me Confessor! Vinde, Frei Galvão, assistir-me”.
    De todos os lados acudiam os comandados e dentro em breve estava ele por terra moribundo, já com a voz sumida, a pedir a presença de um padre, a clamar por Nossa Senhora e os santos de sua devoção.
    Cercavam-no os homens da monção, impressionados com aquele desespero piedoso. Onde naquela selva arranjar confessor que confortasse o moribundo?
 

O aparecimento de um frade do meio do nada

Imagem: historiadejahu.blogspot.com/
    Subitamente, gritou um dos circunstantes: –aí vem um padre! E todos de olhos esbugalhados, absolutamente estarrecidos, viram um franciscano que se adiantava para o agonizante. Nele reconheceram Frei Galvão, cuja figura lhes era familiar como freqüentadores de Itu, que todos eram.
    Afastou com um gesto os espectadores da trágica cena, abaixou-se, sentou-se, pôs a cabeça de Portes sobre o colo e falou-lhe em voz baixa, encostando-lhe depois o ouvido aos lábios. Assim ficou alguns instantes, findos os quais abençoou o expirante. Levantou-se então, fez um gesto de adeus, e afastou-se de modo tão misterioso quanto aparecera, deixando estáticos os presenciadores de tão estranha ocorrência, certos de haverem presenciado um milagre.
     No porto de Potunduva sepultou-se Manuel Portes, e os seus homens assinalaram-lhe o túmulo erguendo tosco e grande cruzeiro que se manteve muito tempo e foi diversas vezes substituído, até que no local se levantasse a capelinha de Frei Galvão, ali desde muitos decênios existente e piedosamente conservada por seus vizinhos. O primeiro retrato do santo franciscano nela colocado foi dádiva do meu saudoso amigo e informante.

Taunay comenta as dúvidas e as confirmações de seu informante

     Todas as particularidades, contou-me, ouvira-as várias vezes e perfeitamente coincidentes dos velhos canoeiros de “Pau-Cavalo”, porto fluvial do município de Tietê. Entre estes canoeiros encontrou J. Pompeu, pelo ano de 1888, diversos embarcadiços das monções de outrora, vários deles octogenários, como alguns cujos nomes me citou e dos quais agora me lembro, como Vicente da Silva, conhecido pela antonomásia de Bugre Velho, guia, João Cardoso, piloto, etc.
    O que impressionara o meu informante era a coincidência dos depoimentos destes homens rudes, transmissores de relatos de origem paterna e avoenga. O que deles ouvira no “Pau-Cavalo”, fora o que lhe repetiram em Barra Bonita, Banharão, Quebra-Pote, e em Porto Feliz, ponto inicial da navegação fluvial tieteense.
    Enorme divulgação teve o caso do assassinato de Manuel Portes. Todas as monções, as que baixavam e as que subiam passaram a aportar no local do crime, visitando-o com toda a curiosidade.

A história, como foi vista em outro lugar, há quilômetros de distância

    Até aqui o sr. Dr. Afonso Taunay, e como dissemos no princípio desta narração, servimo-nos de sua versão, por nos parecer, como também a ele, a mais historicamente certa, pois o mesmo caso já foi publicado por outros autores (Sor Myrian, Manuel Altenfelder Silva) com diversas particularidades, se bem no fundo seja sempre o mesmo: a bilocação de Frei Galvão a favor de Manuel Portes, moribundo.
(***)

Uns dizem que estava pregando…

 
     …Voltando à nossa narração, acrescentamos que, na hora do milagre, estaria Frei Galvão a fazer uma prática em São Paulo. Interrompendo-a, ajoelhara-se, pedindo que rezassem uma Ave-Maria pela salvação de um moribundo, em lugar muito distante. Acabada a oração, levantou-se e continuou a prédica.

Outros, que ensinava…

 
     Segundo outros, estaria a dar catecismo a crianças. Em certo momento, calara-se e debruçara-se alguns minutos sobre a mesa, guardando completo silêncio. Depois, contou aos meninos que se sentia cansado por ter feito longa viagem.

Há cinqüenta anos atrás… de quem era a fazenda?

    A propriedade em cujo território se encontra a capelinha de Frei Galvão, como lhe chamam os seus devotos denomina-se, atualmente, Fazenda Santa Cruz e pertence aos irmãos Dilermando e Edward Vasconcelos Romão. O local da capela fica a distância de 2 quilômetros da sede da fazenda, e a 3 da cidade de Jaú, próxima à estação Ayrosa Galvão e à ponte sobre o Tietê, que liga Pederneiras a Bauru.
    Durante todo o ano, apesar de ser o local inteiramente ermo, ali vão pessoas cumprir promessas ou, simplesmente, visitar a capelinha, por devoção, mas é o dia 3 de Maio, Dia da Santa Cruz, que o povo consagrou, para fazer a sua festa.

As festas na Igrejinha de Frei Galvão

    Cedinho começam a chegar os caminhões, auto-ônibus, automóveis e, pelo rio, botes e canoas, trazendo os devotos. Em breve apinha-se o povo, em torno da capelinha muito branca, caiadinha de novo, enfeitada de flores e bambus, pois assim a paramentam todos os anos, para o dia da festa. Um sacerdote, vindo de Jaú, celebra a Santa Missa, faz uma prática sobre o mistério do dia, e não deixa de recordar, também, a tradição secular da santidade do humilde franciscano, que consagrou para sempre esse lugar.
     Como deve ser lindo, depois, quando o eco de centenas de vozes, entoando cânticos piedosos, se perde pela infinidade dos campos! Nada há que impeça as vozes: nem ruído de veículos e seus motores, nem aviões, nem arranha-céus, e parece que as orações feitas aí chegam mais depressa ao céu. Será por isso que não raras são as graças que ali se recebem?
      Que o digam os retratos, muletas, roupas, escritos, etc. que lá deixam os agraciados como prova de sua gratidão, e a grande quantidade de velas sempre acesas, e que, digamos de passagem, fazem o bom ofício de obrigar os devotos a caiarem a capelinha todos os anos, pois, a deixam toda enegrecida de fumaça.

Como era o fim do dia 3, todo ano, em Potunduva

 
      O dia inteiro é de festa, e chegando a tarde, quando o sol vai declinando, põem-se os devotos de regresso, satisfeitos de terem rezado e cantado, aí, no mesmo lugar em que um santo pisou em vida, de modo tão milagroso e extraordinário.
       Quando a noite cai, não há mais ninguém: o silêncio profundo e impressionante é quebrado apenas pelo canto melancólico de alguma ave retardatária; a capelinha fica só, em companhia apenas do Tietê que não pensa em dormir… Corre, corre sempre, como nossa vida. Oxalá acabe ela, lançando-se no mar imenso da eternidade feliz, semelhante á existência santa de Frei Galvão.

Uma represa no caminho da história,
…em Potunduva

Imagem do Google Earth
Hoje a capelinha de Frei Galvão está submersa pelas águas do represamento de Bariri. Na sua falta, os moradores de Potunduva criaram um Parque Frei Galvão, lembrança presente num dos cantos da pequena vila, sempre recebendo devotos.

 


Fontes: 1.“Frei Galvão, Bandeirante de Cristo”, edição de 1954, sendo sua autora, apenas assinada por Maristela, Editora Vozes, Petrópolis – Rj. 2. subtítulos e organização: João Carlos Figueiroa. 3. Pesquisa regional: João Carlos Figueiroa. Fotos de época: livro acima citado. 4. Fotos atuais: David José Devidé. Fotos aéreas: Google Earth.