Gesiel Júnior
Especial para o Botucatu online
Participantes do Sínodo da Amazônia, que se realiza em Roma, sob a presidência do Papa Francisco, se reuniram no último domingo, 20 de outubro, para renovar o chamado ‘Pacto das Catacumbas’, um documento assinado por mais de 40 bispos latino-americanos às vésperas da conclusão do Concílio Vaticano II, em 1965. O evento aconteceu na catacumba de Santa Domitila, na capital italiana. Dentre os 42 signatários esteve o primeiro arcebispo de Botucatu, dom frei Henrique Golland Trindade, OFM (1897-1974).
Organizado hoje por dom Erwin Kräutler, bispo emérito da Prelazia do Xingu (PA), o grupo participou de uma missa por volta das 7h (2h no horário de Brasília), presidida pelo arcebispo emérito de São Paulo, cardeal Cláudio Hummes, relator do sínodo. Alguns membros da assembleia sinodal seguiram em caravana rumo ao local que testemunhou esse momento histórico para a Igreja Católica, marcadamente para a Igreja da América Latina, que tem o seu primeiro representante no trono de Pedro, o argentino Jorge Mario Bergoglio, Papa Francisco.
Cerca de 150 padres e bispos aderiram ao compromisso, além de alguns leigos. O texto, apesar de ter como base o documento de 1965, foi denominado de “Pacto das Catacumbas pela Casa Comum”, com referência aos temas tratados pelo Sínodo para a região Pan-Amazônica. O evento aconteceu de maneira privada e no final da missa, todos os participantes assinaram a declaração.
Fidelidade ao espírito de Jesus
No dia 16 de novembro de 1965, há quase 54 anos, poucos dias antes do encerramento do Vaticano II, cerca de 40 padres conciliares celebraram uma missa nas Catacumbas de Domitila, em Roma, lugar onde os primeiros cristãos que morreram mártires eram sepultados. Na ocasião pediram fidelidade ao Espírito de Jesus e no fim dessa celebração eucarística assinaram o “Pacto das Catacumbas”.
O documento é um desafio aos “irmãos no episcopado” a levar adiante uma “vida de pobreza”, uma Igreja “serva e pobre”, como sugerira o Papa João XXIII.
Na ocasião do ato original, em 1965, entre os 42 signatários, além de dom Henrique Trindade, estiveram presentes outros quatro brasileiros: dom João Batista da Mota e Albuquerque (1909-1984), então arcebispo de Vitória; dom Francisco Austregésilo de Mesquita Filho (1924-2006), bispo de Afogados de Ingazeira (PE); dom José Alberto Lopes de Castro Pinto (1914-2007), bispo-auxiliar do Rio de Janeiro; e dom Antônio Batista Fragoso (1920-2006), bispo de Crateús (CE).
Franciscano gaúcho, dom Henrique guiou os católicos da região durante 20 anos, entre 1948 e 1968, tendo vivido de maneira despojada até sua morte, em 1974, entre as crianças acolhidas na Vila Sagrada Família, em Botucatu.
Na época, ao assinar o documento histórico, o arcebispo de Botucatu se comprometeu a viver em pobreza, a renunciar a todos os símbolos ou privilégios do poder e a pôr os pobres no centro do seu ministério pastoral. O texto teve uma forte influência sobre a Teologia da Libertação, que surgiria nos anos seguintes, além de ter motivado a convocação da segunda Conferência Geral do Episcopado Latino Americano (Celam), realizada em Medellín, na Colômbia, em 1968.
Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre
Eis, na íntegra, o texto firmado em 1965:
“Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:
1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.
2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.
3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.
4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.
5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor…). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.
6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.
7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.
Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.
9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de “beneficência” em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.
10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.
11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral – dois terços da humanidade – comprometemo-nos:
a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;
a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.
12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:
esforçar-nos-emos para “revisar nossa vida” com eles;
suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;
procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores…;
mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.
13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.
Ajude-nos Deus a sermos fiéis”.